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Colunista

Marcelo Pardo

Se ninguém quer me amar, eu também não amarei ninguém?

Nos dias atuais, tem estado muito presente na fala de muitos pacientes a ideia de que muito se deseja e se busca um relacionamento estável, uma convivência em casal, demonstrando um certo esgotamento da ideia de que o hedonismo, a vida pautada pelo prazer desmedido, não satisfaria mais as utopias de felicidades humanas. No entanto, na prática, o que vemos é cada vez mais um ser humano centrado em si mesmo e cultuando a individualização, o egocentrismo, o narcisismo e a mitológica ideia de se poder ser um super-homem, no sentido Nietzschiano. Há algo de muito contraditório neste dizer e neste falar das pessoas.

 

Cada geração tem buscado reunir um repertório de narrativas que tente dar conta de um sentido da existência de cada agrupamento social e, consequentemente, de cada sujeito que componha tais grupos. Após a revolução industrial, século XIX, consolidou-se um modelo de padronização familiar, formado pela tríade pai, mãe e filho ou filhos. Este modelo de família assegurava a formatação dos burgos e dos trabalhadores, foi uma forma de organização social onde o amor trovador romantizava a visão da instituição familiar e encobria o autoritarismo masculino sobre mulheres, crianças e ocultava os casos de infidelidade conjugal – na grande maioria das vezes causados pelo macho dominante -, o que durante cerca de duzentos anos deu conta de um certo ordenamento que atendia ao sistema econômico predominante no mundo, o capitalismo.

Esse modelo de família nunca foi único e para todos nunca nos trouxe a certeza da harmonia e do bem viver, pois tinha em uma estrutura primitiva e patriarcal sua forma de hierarquização rígida, onde o chefe de família, pai, marido, macho dominante possuía a condição de detentor da ordem e das verdades no espaço privado de cada família. Para que isto se consolidasse, a família, como toda instituição humana, era preconizada, desenhada e reforçada pelos instrumentos de controle social que compõem as estruturas do Estado.

Com o passar dos anos, a aquisição de novas tecnologias, reformulação dos sistemas de produção, mudança de hábitos e costumes, o homem de forma lenta e gradativa vai cedendo espaço às mulheres. Com a Segunda Grande Guerra Mundial e seus cerca de sessenta milhões de mortos, nos anos 1939 a 1945, as fábricas precisavam produzir dia e noite para o esforço de guerra, foi quando as mulheres foram convocadas a deixarem sua condição de donas de casa, criadoras de filhos para se tornarem operárias nas mais diversas indústrias em várias partes do mundo.

 

Muitos desdobramentos depois e, com o fim da guerra, no retorno dos homens aos seus países de origem, a realidade das mulheres como trabalhadoras fora de casa, com seus salários e poder de compra se tornara conquista civilizatória, que pelo menos nos países menos primitivos passou a ser conquista adquirida e sem retrocesso. Esta análise histórica é necessária para que compreendamos que não existe almoço de graça e nada na humanidade é fruto do acaso, mas sim de uma construção psico sócio-histórica.

Os eventos citados acima são importantes marcadores para a construção de uma nova identidade de gênero, de funções mais assemelhadas de ambos os gêneros e para a busca de igualdade entre homens e mulheres, ainda não conquistadas plenamente. Prestemos atenção que é necessário uma catástrofe humana, a Segunda Grande Guerra, para que novas doutrinas de verdades se estabeleçam, as condições para o paradigma da modernidade e da individualidade estão definitivamente criadas, algo que irá resultar, em seguida, no culto ao consumismo, à materialidade erguido sobre a doutrina do indivíduo, da individualidade.

 

Essas doutrinas muito agradam ao sistema econômico, já que o antigo modelo de família era composto por um pai, uma mãe e quatro ou mais filhos e o novo modelos de existência humana individualizada dividia este número de membros familiar por dois, três ou até mesmo um único individual, o que multiplica em muito o número de casas necessárias e os bens de consumo para cada uma dessas novas casas. Mais uma vez os interesses econômicos em nossos dias, a entidade denominada mercado, redefinia as formas de organização do conjunto das sociedades humanas, algo que está muito longe de ser entendido como perfeito, equilibrado e harmônico.

 

O amor trovador, o amor romântico, precisa ser substituído pelo pragmatismo de prazer efêmero, circunstancial e pontual, para que laços afetivos mais sólidos não sejam construídos e desta forma o individualismo predomine sobre a ideia de formação de grupos familiares. Esta é a síntese grosseria da bomba atômica que foi construída para implodir o modelo de família pequena e burguesa que foi tão útil e necessário para o século XIX.

 

Mas o que fazer com os afetos humanos? Como separar as emoções humanas da racionalidade? Como restringir o prazer sexual a algo estritamente reduzido ao orgasmo? Como fabricar um ser humano mecanicista, atomista, racionalista e isento de suas paixões?

Este é o desafio que o discurso pós-modernidade assumiu para si, através dos atuais instrumentos de controle social, sendo o mais poderoso deles a internet, nova forma de religião que busca consolidar a fragmentação humana em indivíduos autônomos, sem paixões, sem afeto e emoções. Daí a contraditória e ambígua condição do sujeito em nossos consultórios angustiado, frustrado, amargurado, existencialmente inseguro e indeciso, sobre os questionamentos AMAR OU NÃO AMAR? SOFRER OU NÃO SOFRER POR EMOÇÕES QUE NÃO CONTROLO? Estas questões só seriam possíveis de resolver, se houvesse uma mutação em massa e a boa e velha neurose que nos forja o aparelho mental das maiorias humanas fosse substituída pela massificação da perversão na forma de bilhões de psicopatas, algo que nós humanos não somos capazes de criar.

Em síntese, não temos o que colocarmos no lugar do bom e velho Amor Objetal freudiano, isto seria o fim da própria condição de humanidade. Daí ser possível sim fugir das dores das paixões humanas, mas não ser possível viver sem por elas passar em vários momentos de nossa existência. Viver também dói e angustia.

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