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Colunista

Marcelo Pardo

A fragilização das democracias e o crescimento da extrema direita: o que tem levado o mundo ocidental a cometer erros históricos ou erros do passado?

A pergunta acima possibilita a escrita de inúmeros livros, mas tentarei escrever em linhas gerais sobre alguns aspectos que destaco como sendo importantes elementos, que se não dão conta da complexidade do tema, possibilitarão pensarmos por diversos aspectos o tema que proponho.

A democracia é invenção muito antiga, podendo ser observada sua origem num sentido amplo na Grécia antiga, após uma revolta liderada por Clistenes, 510 anos antes de Cristo, contra o tirano ditador à época, a autocracia é derrubada e uma série de mudanças na estrutura política foi implementada. Ideias como parlamento, representantes da população, juízes e eleições ou sorteios para cargos públicos, liberdade, propriedade, isonomia (igualdade entre os cidadãos), isocracia (igualdade entre os cargos públicos), isegonia (igualdade para falar na Assembleia).

Mas é importante compreendermos que a velha democracia grega era um imenso avanço diante das ditaduras e aristocracias monárquicas, mas estava muito longe de ser igualitária, já que a civilização grega se subdividia em classes de cidadãos compostos de homens gregos livres e do sexo masculino; as mulheres não possuíam cidadania; aos cidadãos gregos do sexo masculino era concedido todos os direitos legais e políticos, aos Melecos, estrangeiros que moravam na Grécia, cabiam atividades como comércio e artesanatos, sem direitos políticos e sem mobilidade social, pagavam impostos e o serviço militar era obrigatório para esta classe, por último a maior parte da população grega, os Escravos.

A população grega era formada em sua imensa maioria por escravos, eram apenas objetos de propriedade de seus senhores e não possuíam direito nenhum, exceto leis que proibiam em teoria castigos excessivos, algo vago e impossível de ser controlado pelo Estado grego. Nos dias atuais, poderíamos afirmar que a democracia grega era de minorias privilegiadas, era xenófoba, misógina e escravagista. Como podemos observar, a velha democracia grega, no que pese o avanço para a época, não incluía avanços civilizatórios que a civilização ocidental só viria a adquirir nos séculos XVIII e XIX, com a revolução francesa e posteriormente com o advento da ciência moderna.

Essa breve e superficial visão da democracia grega se faz necessária para compreendermos o nascimento do sistema, que longe de ser perfeito, se pretende a mais popular e participativa forma de sistema de governança, quer nas repúblicas liberais, quer nas monarquias parlamentares, além claro, do fato de que as democracias se tornaram o sistema político que melhor se adequa ao capitalismo, sistema econômico predominante no mundo, inventado há cerca de 500 anos na Holanda.

O inevitável desgaste das democracias, de tempos em tempos, se dá por vários fatores, cito dois que penso serem os principais deles, o primeiro a sua impossibilidade óbvia de dar conta de todas as utopias, desejos, necessidades fantasiadas no imaginário humano, algo impossível em qualquer regime ou sistema de governança e, o segundo é a ruptura inevitável com o platonismo e cristianismo enquanto doutrina e filosofia de promessa de futuro que nunca se faz presente. Em outras palavras, as promessas são quase sempre frustradas e na maioria das vezes não executadas ou quando materializadas não dão conta das imensas maiorias populacionais, a ponto de o sistema sequer dá conta de algo tão elementar quanto superar a fome em vários países do mundo, incluindo o Brasil, ainda hoje entre 800 milhões e um bilhão de seres humanos passam fome todos os dias no mundo.

A democracia possui outros problemas de ordem subjetiva que não têm como ser resolvidos nas realidades objetivas, um de seus principais postulados é a representatividade de grupos, classes, categorias, como se isto fosse efetivamente possível. O sujeito humano é processo de mudanças e inconstâncias, é dinâmico, é movimento, o que deseja agora, não deseja no instante seguinte, o que necessita agora, não valora mais no momento seguinte, como representar algo que nem o próprio sujeito consegue dar conta de definir no tempo e no espaço, exceto de forma efêmera, passageira e circunstancial? Sim, a democracia é uma utopia de dois mil e quinhentos anos que tenta se renovar, se modificar e se adaptar às citadas inconstâncias e mudanças de sujeitos e grupos.

Em meio a essa dicotomia, impossibilidade de representar algo móvel e dinâmico, somado ao desafio insolúvel de ser garantidor das promessas de futuro que não se fazem presente. As democracias se tornam um símbolo de civilidade, liberdade e autonomia, mesmo que mais no mundo das ideias do que no campo das realidades. Não que não ocorra materialidade de parte dos desejos e anseios humanos, o fato é que mesmo em democracias modelares em termos de desenvolvimento científico, ético, moral, econômico, tecnológico e principalmente quanto à qualidade de vida da população, como é o caso dos países escandinavos, Noruega, Suécia e Finlândia, mesmo entre essas populações, a boa e velha neurose se faz presente e o devastador vazio existencial tangido pela angústia que ele provoca leva as populações a melancolia e infelicidades individuais e coletivas.

São nestes momentos em que uma grande parte da população se sente frustrada com a não realização de suas expectativas, sonhos e desejos que todo o edifício social se põe em risco e o ordenamento social ou é “reformado” para se apresentar como novas formas de promessa de futuro ou é demolido e substituído por ditadores que se apresentam como semideuses capazes de mostrar o caminho que toda uma população deva seguir, obviamente fracassam, o que lhes sustenta é a imagem paternalista, populista de direita ou de esquerda que vendendo a ideia de que tudo sabem e tudo podem, se apresentam como sendo capazes de transformar o inferno existencial de seus seguidores em paraísos na terra.

Os autocratas autoritários se utilizam de máquinas de força e repressão sobre as populações que “governam”, gerando tensão e medo constante, a fórmula funciona até o momento em que a mesma população descobre que homens não fazem milagres, que autocratas não são nada além de carne e osso, soberba, arrogância, perversão, a vaidade e a soberba depõem os ditadores de plantão, eles são seus principais opositores, tendo em vista suas incapacidades de realizar os sonhos das massas.

Nos dias atuais, vivemos um dos momentos onde a maioria dos povos vive sob sistemas que se pretendem democrático, a maioria dos países reduzindo as democracias a processos de escolhas eleitorais de tempos em tempos, mas geralmente mantendo estruturas oligárquicas econômicas e de poder distantes das bases das estruturas sociais que são geralmente miseráveis e sem representação, como se fossem as mulheres ou os escravos da velha Grécia, até votam, mas não veem suas necessidade defendidas no espaço público ou materializada na resolução de seus problemas na realidade.

O populismo se alimenta da insatisfação das populações miseráveis e ingênuas que via de regra se iludem com promessas falso moralistas de uma espécie de santidade governamental, não apresentando medidas práticas para a resolução de problemas concretos da realidade, como desemprego, infraestrutura, saúde, educação, segurança, transporte, ciência e tecnologia.

Mas o que há em comum em ditadores e democratas? Simplesmente o platonismo/cristianismo das promessas de futuro que nunca se fazem presente, pelo menos para a imensa maioria dos povos do planeta Terra. As democracias, no que pesem seus dois mil e quinhentos anos, ainda são o sistema mais moderno, civilizado e liberal que o homem já inventou, precisam e devem ser aperfeiçoadas sempre, nelas há uma maior expressão das liberdades individuais e econômicas como nenhum outro sistema possibilitou até o momento, com raríssimas exceções.

Mais que votar e ser votado, as democracias exigem a participação da população na organização da sociedade civil em todas as suas formas de demandas grupais, mesmo sendo estas demandas modificáveis no tempo e no espaço. Nossa sanidade mental é dinâmica, móvel, mutante, conservar e criar são pretensões que convivem de forma, nem sempre harmoniosa e complementar, mas as democracia se mostram o logos existencial político que melhor lidam com as forças contraditórias e muitas vezes antagônicas geradas por “vontades” individuais e de grupos, pelo menos até o momento.

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