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Colunista

Marcelo Pardo

“Há dias que não sinto vontade de sair da cama, de fazer nada, não me agrado com nada, tudo parece não fazer sentido. Me pergunto o que estou fazendo aqui?”

Como uma frase aparentemente tão simples e curta pode nos dizer tanto? De cara, estamos falando de um jovem de 18 anos que olha para o seu redor e não encontra prazer em nada que percebe, o que por si só já é imensamente intrigante, pois a biologia humana aponta essa idade como o ápice do vigor físico, do desejo pela vida, pela sexualidade, pelos prazeres das descobertas, com as vivências no mundo e com as pessoas em geral. Como pode estar tão melancólico alguém que se encontre em um momento tão potente da própria existência? Pelo simples fato de o Mal-Estar na Civilização aniquilar qualquer forma de potência e de desejo, no caso em questão.

Tomemos a psicanálise freudiana como ponto de partida, a cronologia, o tempo do calendário ou minuto e horas dos relógios, o tempo da biologia dos corpos, das células e suas fisiologias foi quase que totalmente domado pelas estruturas mentais desenvolvidas a partir da dimensão psicossociohistórica do ser humano. A humanidade “venceu” a natureza impondo ao animal-homem camadas e camadas de formas de pensar sobre si, o mundo e as pessoas que lhe cercam. Mas como dizer a este homem, fruto de suas crenças e verdades supostas, que tudo não passa de uma enorme ilusão, que tudo que a vida nos promete de fato e cumpre é a certeza da finitude, a certeza da morte?

Os especialistas em tanatologia sabem muito bem que mesmo a morte parece um sono interminável como lugar comum, ou como já nos ensinava o filósofo helenista Epicuro 341 anos antes de Cristo: “morte onde tu estás lá não estarei”, denunciando que quando a morte chega o Eu já não se encontra mais. No entanto, enquanto a senhora morte não chega, o homem, ao longo de sua pré-histórica e histórica existência, nos últimos 300 mil anos, vem criando, inventando formas de conduta que deem conta deste tempo existencial entre o nascimento e a finitude. A antropologia, a história, a filosofia e a psicologia, mais recentemente, têm nos possibilitado compreendermos como o homem tem sido criativo na invenção de lendas, mitos, crenças e supostas verdades, uma infinidade de histórias para tentar ocupar esse espaço temporal existente ao longo da vida. Um grande avanço se deu com a invenção do trabalho, muito em particular do trabalho coletivo: caçar, coletar e pescar são velhas invenções humanas, nos acompanham desde os tempos que habitávamos o topo das árvores nas savanas africanas. Sim, o trabalho nos acompanha desde sempre, mas é com a invenção da agricultura, cerca de 12 mil anos atrás, que o homem deu um salto imenso em direção ao que chamamos hoje de civilização, pois foi a agricultura que possibilitou o domínio do ciclo de produção de alimentos, primeiro grande passo para um certo domínio sobre a natureza, a compreensão mais clara de quantidades, armazenamento, controle do tempo de plantio, colheita, produção e período improdutivo, solo apropriado ou não e, o mais importante, a fixação dos primeiros agrupamentos humanos em um determinado lugar dando origem aos primeiros povoados e cidades primitivas.

As invenções citadas acima e muitas outras chegaram aos dias de hoje através de inovações e saltos tecnológicos, no entanto, tudo a ser construído e conquistado cumpria não apenas o papel de nos assegurar sobrevivência, os primeiros enfeites na forma de colares de conchas marinhas ou de pedras exóticas da pré-história antecederam o que se tornou o ouro e a prata no imaginário humano. O que surgiu como adorno, adereços, enfeites, evoluiu para vaidade e mais aos nossos dias em mais valia. Os adereços de nossos dias não são mais brincos com cachos de penas de pássaros, são toda sorte de quinquilharias que os vários dígitos em um computador de um banco possam ter em contas bancárias que pilham fortunas imaginárias.

O homem vive de sonhos, de promessas de futuro, um eterno platonismo que os pobres de letras acessam através do cristianismo no ocidente e de outras formas de crenças que trazem em si uma promessa de vida melhor em um idílico futuro que estaria por vir, mesmo que este futuro seja pós-morte. Essas ideias forjam as crenças de bilhões que nelas se agarram, pois é a única fantasia de bem-estar que conseguem ter, uma promessa de um futuro melhor.

Os leitores mais atentos já perceberam o que tudo isto que aqui escrevo tem a ver com a frase do jovem de 18 anos que intitula a presente coluna. Vivemos na era da internet, das redes sociais, nossas fantasias imaginárias ganharam a dimensão de uma postagem que para o bem ou para o mal tem o poder de nos autoafirmar ou de simplesmente nos aniquilar socialmente. Não é mais o germinar das plantas cultivadas na velha agricultura de 12 mil anos atrás que nos encanta, muito menos o aparelho de televisão de 20 polegadas em cores que tanto nos iludiu de felicidade imaginária, no final do século XX, agora o sentido da existência humana segue a velha fórmula, não existe o Eu sem o Outro, sim é o olhar e o dizer do outro que reforça as bordas do meu próprio Eu, mas este olhar vivencia em nossos dias a velocidade frenética do mundo digital.

Em um dado instante ouvimos uma música em nossos celulares, no seguinte vemos mísseis caindo na Ucrânia, no outro uma dancinha ridícula nos faz rir em um aplicativo popular de vídeos curtos. Nunca a Teoria das Neuroses do Dr. Sigmund Freud foi tão evidente. Nunca lemos e escrevemos tanto e dizemos e lemos tão pouco, tudo é rápido, é instantâneo, é descartável, é entediante, não degustamos mais o mundo, sequer mastigamos, engolimos inteiro e, em uma nova forma de antropofagia, as civilizações trazem através da tecnologia da informação, ou deformação, um novo ser que não consegue acompanhar tanta velocidade, volume e superficialidade de saberes que lhe são postos. Surgem novos santos e heróis a serem seguidos, perseguidos, idealizados e invejados. Não basta eu viajar para Paris, Nova York, Cairo, Jerusalém, Roma etc., é preciso que eu publique na internet e receba a concordância do Outro através de likes, corações, para aí sim, a partir deste reconhecimento, eu me convencer de que de fato possa estar feliz, fazendo algo que de fato seja “legal”. Tanta velocidade de informação ou deformação exige um nível de alerta, de excitação jamais exigido do ser humano, chegamos ao ponto de dirigirmos olhando para o celular, estarmos em um cinema ou teatro e olharmos para as telas dos celulares, professores precisam pedir para que alunos desliguem seus celulares para que aulas possam ser dadas, isto desde os primeiros anos escolares até as universidades.

Qual cachorro consegue correr atrás do rabo com tanta velocidade? Nenhum é a resposta, com a constatação do inevitável fracasso das grandes maiorias que se deixam aprisionar na “droga” mais viciante dos tempos atuais, chegamos ao esgotamento das mentes humanas, desgastadas neste jogo incessante e interminável. Karl Max, filósofo alemão do século XIX, em seu materialismo histórico, escreveu em um texto sobre economia e controle social que a religião seria o ópio do povo, no sentido de alienar as grandes massas em um lugar de conformidade social e econômica sem maiores queixas ou cobranças à estrutura social na qual estejam inseridas. Marx talvez afirmasse o mesmo hoje para as redes sociais.

Nosso jovem do título desta coluna se soma aos milhões de seres humanos no mundo que experimentam o esgotamento da conexão entre atribuir sentido às coisas que não conseguem mais representar sentido por um período de tempo maior, tudo esvazia, a família, as crenças, as profissões, a escola, a universidade e até mesmo os laços sociais de amizade e parentesco. Retirando-se do turbilhão de narrativas que tentam dar conta do tempo existencial de cada um, não encontra solução para o imenso vazio que o bicho homem se torna sem suas fantasias e ilusões sociais. Este mal-estar pode ser passageiro, doloroso, intenso ou mesmo aniquilador, como nos ensinam os suicidas.

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