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Colunista

Marcelo Pardo

“Quando eu penso em me matar, eu não penso na morte, em morrer, ou no fim; só penso que a vida não tem a menor importância, nenhum sentido, não é necessária”

Ao ouvirmos uma frase como essa acima, nos deparamos com um fenômeno estritamente humano, o suicídio, algo extremamente complexo e que somente alguns seres humanos praticam. Oitocentos mil seres humanos se matam e outras cerca de dezesseis milhões de pessoas tentam se matar por ano, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), organismo das Nações Unidas responsável pela quantificação e controle das informações teóricas e práticas na saúde humana de toda humanidade. Esse é um número muito maior de mortes do que os registrados em países em guerra.

Falar de suicídio é algo difícil, tendo em vista os inúmeros aspectos que podem levar alguém a se matar, mas falar sobre suicídio é algo extremamente necessário, já que o desconhecimento implica em ignorar o problema, bem como as várias práticas preventivas e de potencial solução ou redução das tentativas e mortes. O suicídio não é uma doença em si, mas é um fenômeno presente em várias patologias mentais como Transtorno Depressivo, Transtorno Bipolar, Transtorno Esquizofrênico, Transtorno de Alcoolismo, Transtornos de Personalidade e em pessoas sem nenhum tipo de Transtorno Mental.

O matar a si mesmo é comportamento específico do ser humano, como já descrevi acima, fenômeno portanto psicosociohistórico presente desde os mais remotos tempos e nas mais variadas culturas, chegando aos nossos tempos atuais. Pode ser observado em sociedades tribais, como as presentes na floresta amazônica, ou em sociedades extremamente tecnológicas, como a japonesa; está presente em países economicamente miseráveis ou muito pobres, como o Brasil, ou em países extremamente ricos e desenvolvidos, como a Finlândia.

Relatos antigos podem ser observados em textos religiosos como a Bíblia judaico-cristã, Mahabharata budista e o Gilgamesh Indú, além de em vários mitos e lendas nos cinco continentes. Como qualquer fenômeno humano, o suicídio passou por várias formas de expressão cultural e ainda passa. Num primeiro momento, era associado a deuses e heróis, sendo a única forma honrosa que determinadas divindades e heróis tinham de sair de determinadas situações e dilemas, como é o caso da rainha/faraó do Egito, Cleópatra, que viveu entre 69 e 30 antes de Cristo. É preciso compreendermos que essa era uma maneira pela qual as culturas tentavam dar conta de um fenômeno que mesmo em nossos dias é muito complexo, e pensarmos que o fato de não encontrarmos relatos antigos sobre suicídios de pessoas comuns não significa que eles não ocorressem, já que a escrita ainda era algo que só uma elite dominava.

No que pese o ato de se matar ser unicamente humano e extremamente antigo, a palavra suicídio não existia, é somente com o médico inglês Thomas Browne que, em 1643, escreveu o livro “Religio Medici” Da religião dos Médicos, escrito em latim, como era o costume na época, que o escritor busca uma palavra nova para definir o fenômeno e trazendo do grego o termo autófonos, que significa matar a si mesmo. Em 1645, o livro é traduzido para o inglês e o termo grego autófonos é substituído por suicide, dando origem à palavra suicídio, e com ela a entrada do tema para a área dos problemas de saúde.

É importante notarmos essa transição, pois suicídio passa neste momento a deixar de ser percebido como algo heroico ou divino, para algo resultante do adoecimento dos seres humanos. É na medicina francesa que Phelippe Pinel, o médico neuroanatomista do final do século XVIII e início do século XIX que define que o suicídio resulta de uma sensação dolorosa de existir e que essas sensações seriam resultado de alterações corporais, a maioria no cérebro, indicando assim a compreensão da importância do cérebro e de alterações ainda desconhecidas à época como base biológica para o suicídio, isto em 1801. Essa sensação dolorosa seria em alguns sujeitos tão intensa que eles, para deixarem senti-la, poriam fim à própria vida. Em seguida, o também médico psiquiatra francês Jean-étinne Esquirol, 1772 a 1840, afirmava que o suicida é mentalmente insano; Claude-étinne Bourdin, também médico psiquiatra francês, 1815 a 1886, reafirma que todo suicídio é um ato de insanidade mental, sendo a partir da medicina psiquiátrica francesa do final do século XIX que se consolidará o suicídio como associado à “loucura humana” e que portanto o suicida passa a ser uma questão de saúde mental humana ou comprometimento dela.

Outra forma como a civilização ocidental tentou tratar o tema foi a filosófica, onde aspectos éticos e morais foram a temática central do debate sobre o domínio da própria vida, mas é num segundo momento que o suicídio passará a ser entendido como resultante de um fenômeno social reflexo do adoecimento das civilizações humanas. Émile Durkheim, 1858 a 1917, filósofo francês e pai da sociologia, em seu livro “O Suicídio”, afirma que o suicídio é um fato social, onde forças sociais se impõem ao indivíduo a ponto de se tornarem insuportáveis, onde alguns indivíduos são mais vulneráveis que outros, mas que a ideia de uma psicopatologia, uma doença mental, para Durkeim, na verdade resulta de uma sociedade imperfeita, injusta, caótica e contraditória.

Durkheim, estudando as guerras regionais do continente europeu a partir do fenômeno suicídio, percebeu que durante os períodos de guerra, entre os países envolvidos em conflito, havia uma redução do número de suicídios e que após as guerras estes números voltavam a aumentar, principalmente nos países derrotados. Em seus estudos, Durkheim identificou que as crenças místicas religiosas são indiferentes quanto ao número de suicídios, na Europa, e que a rigidez moral contribuiria para o fenômeno do suicídio, o que não quer dizer que Durkheim achasse que as sociedades deveriam ser hedonistas, muito pelo contrário, ele afirma que uma sociedade com regras muito frouxas criaria uma espécie de ambiente também propício ao suicídio.

Além da forma ANÔMICA, que seria essa forma de sociedade sem regras, as outras três formas de suicídio que Durkheim identifica seria a ALTRUÍSTA, seriam suicídios que tomam como base uma ideia heroica ou divina, um exemplo brasileiro bem representativo desta forma de suicídio seria o do ex-presidente Getulio Vargas, algo muito evidente em sua carta testamento, onde ele afirma “saio da vida para entrar na história”. A terceira categoria de suicídio seria o suicídio FATALISTA, aquele que resultaria da retirada das condições de vida ou existência anteriores e que remete o sujeito a reconhecer na própria morte a única saída aceitável, era comum entre ex-membros da realeza africana que eram escravizados no Brasil na época da escravidão. Por fim, Durkheim irá reconhecer no suicídio EGOISTA a forma de suicídio que os médicos psiquiatras reconhecem como resultante de patologia, doença mental.

O médico neurologista austríaco Sigmund Freud, 1856 a 1939, pai da metapsicologia Psicanálise, dentre tantas contribuições teóricas e clínicas, aborda de forma indireta o tema do suicídio e de forma direta nos textos em que se utiliza dos mitos gregos Eros e Tanatos para reler as metáforas mitológicas dos velhos gregos, dando uma nova nomenclatura para ambos, onde Eros seria pulsão de vida e Tanatos pulsão de morte. Aqui em tão poucas palavras temos um cipoal teórico dos mais complexos, tentarei dar um sentido mais simples, sem ser simplista ou reducionistas para abordar superficialmente algo tão complexo.

As pulsões de vida e de morte nas teorias freudianas seriam os substitutos que somente humanos possuem aos instintos animais, isto pode ser visto a todo momento. Tomemos como exemplo a alimentação em humanos, não comemos apenas para suprir nossas carências biológicas, fisiológica e anatômicas, algo que faria do ato de comer algo elementar e básico, nós humanos comemos aquilo que desejamos, inventamos a culinária e suas mais variadas formas de elaboração dos alimentos apenas para tentarmos suprir os caprichos de nossos desejos. De tal sorte, que uns desejam massas, outros carnes, outros vegetais e todos em uma incontável forma de preparos e formas de consumo.

Pois bem, os alimentos, uma vez desejados desta ou daquela forma, não atendem nosso instinto animal de necessidade alimentar, visam nos dar uma forma de prazer, que para muitos é algo que lhes falta a existência, como nos obsessivos alimentares. No caso do suicídio, esta forma de prazer, para Freud, seria resultante da psicodinâmica do suicida impulsionando o desejo de aniquilação como fonte de prazer, a pulsão de morte. Aqui devemos tomar muito cuidado em avaliações e análises precipitadas, o Sujeito Desejante é o sujeito do inconsciente, no suicida em particular há uma espécie de gozo sadomasoquista voltado para si mesmo, onde a dor e o sofrimento, que para as maiorias é algo não prazeroso ou pelos menos muito menos intenso, no suicida se torna uma forma de pulsão predominante. Já dissemos aqui que o suicida não tem na morte a finitude como ideal a ser alcançado, o suicida busca na morte o esgotamento da dor, do sofrimento, da ausência de sentido profunda que ele sente em sua vida existencial.

O suicida, no ato do suicídio, promove duas profundas cisões, uma com a humanidade, a linguagem não lhe é mais capaz de proporcionar representantes simbólicos pulsionais, fontes objetivas e subjetivas, materiais e imaginárias que o satisfaça, e rompe também com algo que só nós humanos fazemos, com a natureza, rompe com as leis de autopreservação e perpetuação da espécie, portanto, rompe com a humanidade e com a natureza. Cinde completamente com um Ego estável e funcional, o lugar do suicida no ato do suicídio é de não Eu, ausência de si mesmo, é como se antes de morrer fisicamente, já estivesse morto enquanto sujeito, enquanto indivíduo.

Nesta altura do tema, é importante compreendermos que, sim, há tratamento e cuidados possíveis para pessoas que desenvolvem estados melancólicos tais, em que a morte seja vista como único caminho.

O suicídio deve ser compreendido como o auge de um processo longo, desenvolvido durante toda uma vida, ele não resulta de um impulso desconexo de sentido ou de uma história que o anteceda, assim sendo, o potencial suicida deve ser tratado e cuidado. 800 mil pessoas se matam por ano, 16 milhões tentam e não conseguem, havendo assim um amplo espaço para atuação científica profissional de psicólogos clínicos e médicos psiquiatras.

Seja por razões de doenças mentais resultantes de pressões socioculturais e Transtornos psicológicos, o volume de técnicas, práticas terapêuticas, medicamentos e mudanças de hábitos que conhecemos nos dias atuais e que minimizam e evitam o suicídio é bastante significativo. A ideação suicida, a depressão ou a melancolia não podem ser entendidas como algo do universo da escolha consciente, da vontade pessoal do sujeito, do lugar e ambiente em si, dos níveis econômicos e sociais, desta ou daquela situação específica da vida do sujeito e muito menos como fraqueza. O sujeito que se queixa, raramente o fazem, de que pensa em se matar, deve ser levado a sério, muito a sério por familiares, amigos e companheiros. Não é todo estado depressivo e melancólico que leva o sujeito à morte, mas em alguns casos sim. Cerca de 91 pessoas se matam por hora no mundo e 1,3 somente no Brasil, este é um problema sério, grave e mundial, mas que deve ser enfrentado com racionalidade, inteligência e ciência.

A perda de desejo pela vida, a perda de desejo por pessoas, coisas e lugares deve ser imediatamente investigada por psicólogos clínicos e médicos psiquiatras. Não devemos menosprezar ou negligenciar os pedidos de socorro daqueles que nos cercam. Se você sente ou conhece alguém que se sinta assim, busque ou oriente a busca de atendimento profissional em saúde mental. O Centro de Valorização à Vida, que atende através do número telefônico 188 desenvolve um grande trabalho de orientação, apoio e socorro de pessoas que liguem e se encontrem em elevado sofrimento humano. Busque ajuda, salve vidas!

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