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Colunista

Marcelo Pardo

Quem não deveria assistir o filme Barbie? Ninguém

Todos que queiram, deveriam assistir. Confesso que não tinha a intenção de fazê-lo, mas depois de inúmeras postagens em redes sociais, críticas e polêmicas sobre Barbie – o filme, decidi assistir e fazer minhas próprias avaliações. Aqui compartilho minhas percepções sobre, sem nenhuma pretensão de esgotar o tema.

O que vemos no filme é uma espécie de releitura da mítica ilha de Lesbo, onde uma civilização se organiza tendo como fundamento o matriarcado, o feminismo, e na mulher e suas formas de pensamento o papel central da organização cultural. No filme fica claro que no mundo de Barbie as mulheres exercem comportamentos e ocupam lugares de poder e de autoimposição típicos do patriarcado, que normaliza o homem como sendo o ocupante deste lugar de exercício de poder.

No que pese à linguagem expressa no roteiro, apesar de ser um tanto medíocre e entediante, os temas abordados são profundos, complexos e passam desapercebidos por aqueles que não têm uma certa leitura da antropologia, da psicologia e da sociologia humana em geral.

No mundo de Barbie, a submissão cabe aos homens e não às mulheres. Como as personagens são brinquedos e como nossa civilização possui imensa dificuldade em lidar com as sexualidade, um tema interessante é a identidade de gênero independer da presença de órgão genitais, já que brinquedos geralmente não são fabricados com órgãos genitais. Isso remete o espectador à compreensão clara de que ser homem ou ser mulher não se trata de diferenças anatômicas, mas sim de construção psicosociohistórica, resultante da cultura e da linguagem em que o sujeito humano por ventura se desenvolva.

Foto: Reprodução

A questão da identidade de gênero é abordada de forma inteligente e implicitamente bem fundamentada cientificamente. A questão da orientação sexual é mais implícita, quase imperceptível, nem chega perto do que exageradamente se nos apresenta através de críticas nas redes sociais.

O filme faz uma forte crítica à ideia de um modelo de mulher único, submissa ao homem, uma espécie de escrava para trabalhos domésticos e monopólio sexual dos homens; ao contrário, o homem é apresentado neste lugar de submissão, invertendo a lógica do patriarcado e colocando a mulher em uma forma de existir que é nas realidades humanas ocupado pelos homens. Tudo é exposto de forma satirizada, bem humorada, em uma linguagem simples e leve, uma espécie de dissertação simplificada em sua linguagem.

Um dos pontos fortes do filme é a ideia contemporânea de que a mulher pode exercer qualquer atividade humana que ela deseje.

Foto: Reprodução

Existem diversas formas de mulheres Barbies ocupando toda sorte de atividades humanas. O filme gira em torno do que seria a Barbie tradicional, uma mulher platônica, idealizada esteticamente, atendendo a padrões de beleza euro-caucazianos, comportamentos e reducionismo àquela que existe para atender os desejos do homem, personificado no boneco Ken. No que se refere a esse protagonismo da Barbie mulher bela, mulher sedutora, mulher desejável, mulher vinte quatro horas do dia feliz, sorridente, sempre disposta a atender os desejos masculinos, se apresenta de uma forma histérica, interrompendo sempre a materialização do desejo do Ken, mesmo sendo apresentada como mulher que reafirma a masculinidade do Ken, é ela quem dita os limites que Ken possa ocupar em sua vida.

Foto: Reprodução

Outras Barbies exercem todas as profissões e exercem cargos dos mais variados, são presidentes, congressistas, magistradas, com corpos diversos, cor da pele diversos, como é composta a diversidade humana na vida real.

Em dado momento do filme, a Barbie faz uma espécie de viagem até o mundo dos humanos e se depara com um mundo masculinizado e patriarcal onde tem uma espécie de choque com a nova realidade, porém o conflito inevitável é apresentado no filme como sendo lidado de forma lógica e racional por parte da boneca. Deste ponto em diante, ela compreende como os homens são tratados em seu mundo, passando a pensar que o mundo pode muito bem ser resultante de uma convivência harmoniosa.

Foto: Reprodução

Ken faz a mesma viagem para o mundo dos humanos e se depara com o poder que possuem e exercem os homens em uma civilização estruturada a partir do patriarcado. Logicamente, adora o poder masculino do mundo dos humanos e volta para o mundo de Barbie com a visão de mundo que adquiriu no mundo dos humanos, promove uma revolução no mundo de Barbie e implanta o patriarcado como modelo de comportamento, reduzindo as Barbies a papéis secundários, girando em torno do interesse dos homens.

Foto: Reprodução

Ken ensaia uma tomada do poder político, totalmente dominado pelas mulheres no mundo de Barbie, porém a Barbie retorna ao seu mundo, percebe a insurreição masculina, organiza as outras Barbies, que já se encontravam sob o domínio masculino, retomando o poder e impedindo mudança de regime político no mundo das bonecas.

Para tanto, existe uma boneca fundamental para o enredo do filme, a Barbie estranha, uma personagem que poderíamos rotular de sabedoria, anormalidade, marginalidade, filosofia, fora da caixinha, aquela que pensa de forma adversa, inteligência, resistência etc. A Barbie estranha sintetiza a insatisfação e o eterno incômodo humano, o sentimento de incompletude e de algo que falta, a rebeldia que nos retirou das copas das árvores africanas e nos conduziu à ocupação do mundo e ao desenvolvimento das civilizações.

Foto: Reprodução

O filme termina com a vitória e o retorno ao poder das bonecas Barbies, repondo os homens no papel secundário de existência e as mulheres no centro da civilização.

Foto: Reprodução

O fato é que em ambos os mundos, o que podemos observar é que para além da questão de gênero, que parece central no filme Barbie, há uma evidente obsessão pelo exercício do poder e de dominação que o mundo de Barbie nos expõe, quer do mundo humano quer do mundo de Barbie, só que às avessas.

*Sobre o autor
Psicólogo Especialista em Psicologia Clínica, graduado e pós-graduado na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Professor universitário e estudioso em psicanálise, Ciências da Saúde e Ciências Humanas, exercendo a psicologia em consultório público e particular há 18 anos.

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