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Colunista

Marcelo Pardo

“Eu odeio meu pai, ele já me pôs de castigo me tirando o celular, me cobra que estude todos os horários livres, não para de me perseguir. Hoje no carro me deu vontade de pôr a mão no volante e capotar com o carro e ele morrer, eu morrer e tudo se acabar”

O que levaria uma menina de doze anos a afirmar com tanta clareza e intensidade o ódio que sente pelo pai e seu inegável desejo de que ele morra? Seria essa uma situação pontual, singular, sem maior importância, ou teria essa afirmação maior seriedade e força de verdade?

Por questões históricas e culturais, nossa rudimentar psicologia de grupo dos tempos pré-históricos foi ao longo do tempo e das gerações, em função dos modelos de civilizações, hábitos e costumes de cada povo e de cada lugar, se afunilando para várias formas de pequenos grupos que convencionamos chamar de famílias. Nunca houve um modelo único de família, no sentido singular e universal, mas no período histórico o homem foi inventando formas de agrupar pequenos núcleos de pessoas, inicialmente na forma de clãs, que via de regra eram nômades (andarilhos), posteriormente pequenos grupos onde o homem possuía várias mulheres e grande número de filhos em uma ou mais casas de sua propriedade e, posteriormente, uma mulher principal com seus filhos reconhecidos publicamente e outras mulheres sem compromissos públicos, oficiais ou religiosos. Em todos os exemplos citados se apresenta o homem como figura central destas várias formas de família, e a partir desta centralidade do homem, em importância, prioridade e poder criou-se o que conhecemos como patriarcado.

A brevíssima e superficial apresentação do que seria uma visão geral da história das famílias feita acima foi necessária para que possamos entender um pouco das razões que levam a tornar-se cada vez mais presente em nossos dias essa espécie de revolta e oposição à figura do pai e de parte do que ele representa no imaginário popular atual. Até a segunda guerra mundial, nos anos 1940/1945, o Homem consegue assegurar seu lugar na cultura ocidental de centro da razão da existência social, tendo a mulher um papel secundário, mas durante a guerra, com 25 mil mortos por dia, fábricas precisando funcionar dia e noite para manter o esforço de guerra dos países envolvidos no conflito e os homens tendo que ser mandados aos milhões para as frentes de batalha, as mulheres são convocadas a compor a força de trabalho em vários setores, tornando-se importante mão de obra nas indústrias das principais cidades do mundo. Neste momento histórico, o homem é um ser distante do espaço familiar, a mulher assume e consolida sua posição de sujeito capaz de trabalhar e produzir com eficiência fora de casa, além de dar conta dos filhos e dos afazeres domésticos, o que ficou conhecido como dupla jornada de trabalho.

Você deve estar se perguntando: mas que diabos toda essa história tem a ver com a menina que odeia o pai? Simplesmente tudo a ver! O período histórico citado de forma bem geral acima pode ser compreendido como um marcador das profundas mudanças no homem e em seu lugar social, por conseguinte no núcleo das famílias. A onipotência, onipresença e onisciência, pretendida ao homem, passa a ser compartilhada, mesmo que parcialmente, com a mulher.

A modernidade impulsionada pelas necessidades econômicas e de produção que a grande guerra impôs reduziu muito o poder do patriarcado e, com ele, da figura masculina no ambiente familiar. Era a intensificação da masculinização da mulher e da feminilização do homem, ou seja, das mulheres exercendo funções que antes eram exclusivas dos homens e dos homens perdendo espaço e poder no exercício destas funções para as mulheres. Vejamos que a grande e profunda transformação impulsionada pela guerra se consolida, avança e se aprofunda na civilização ocidental se espalhando aos poucos por todo o mundo moderno, estes são o auge da era moderna.

É claro que tamanha transformação social chegaria até as cozinhas de todas as casas e as famílias que passaram por mudanças, também profundas, seriam afetadas, porque agora o poder era exercido pelo casal, às vezes em comum acordo, às vezes em profundas divergências e às vezes às escondidas um do outro, assim os filhos modernos das novas gerações passam a ser criados com esse pai que ainda detém muito poder, mas que já não é a única voz determinante dentro do ambiente familiar. Sendo as crianças dotadas de inteligência e astúcia, começam a jogar com os pais conforme seus desejos e interesses e o pai, que passou a ser visto como figura maleável e flexível, vira um joguete nas mãos dos desejos infantis em geral.

Mas em nossos dias, o que vivemos hoje que possibilita uma frase como a do título desta coluna? Bom, o atual período é definido como período da pós-modernidade, ou como diria o filósofo polonês Zigmunt Bauman a Modernidade Líquida, onde tudo é efêmero, passageiro e descartável, inclusive a família e as figuras parentais, mesmo que seja ainda necessário uma espécie de teatralização hipócrita dos enlaces familiares. Isto não deve ser confundido ingenuamente com falta de amor, respeito ou ainda de fim das famílias, muito longe disto, não estamos diante do fim, mas de mais uma adaptação e fluidez das interações dentro do núcleo das famílias.

O ódio pelos pais sempre foi um tabu expressamente proibido e reprimido, principalmente por nossa própria sanidade mental, a partir da estruturação do aparelho mental humano conforme nos civilizamos, mas nunca reprimimos o que não existe e muito menos reprimimos com tanta força e rigidez algo que seja frágil, excepcional e insignificante, muito pelo contrário, foram necessários milhares de anos de civilização para conseguirmos quase que extinguir a violência contra figuras parentais familiares, mas o emocional está em constante movimento dentro de nossas mentes e amor e ódio são emoções muito próximas, se alimentadas pelas paixões encontram nas fantasias, delírios e falas o caminho mais saudável, ou menos traumático para se manifestar. De tal sorte que a pobre menina expressa a dor e o sofrimento que reconhece no pai a origem, se autoimpondo grande controle em seus impulsos agressivos a ponto de apenas fantasiar e falar seus desejos agressivos, pois que mal suporta a autoridade rarefeita de um pai que se pretende autoridade, autoritário e perseguidor, isto pela percepção da menina em questão.

Longe de se tratar de caso isolado, a ruptura com a ideia de um pai autoritário, repressor e interventor no dia a dia dos filhos em geral vem sendo cada vez mais lugar comum. Nosso modelo de civilização, de sociedades, de meios de produção nos trouxe até aqui.

Como os pais e o pai em particular podem exercer o principal de seus papéis, o de estabelecer os limites de uma criança? Este tem sido grande desafio dos tempos atuais, civilizar as crianças, humanizá-las, domar seus impulsos para um bom convívio em sociedade, a respeito do cumprimento às leis, bem como ser componente de algo que Freud definirá como Complexo de Castração, tem sido substituído pelas perversões características da pós-modernidade, muitas vezes imaginadas como sendo uma espécie de liberdade ilimitada e incondicional.

Desde Freud, sabemos que o Pai é o “castrador”. Como diria Lacan, o pai simboliza a Lei do Pai, a interdição, e o “isto não pode”, mas o pai também organiza, mesmo que inconscientemente o Complexo de Édipo, ou seja, através da relação com o pai é que se erguerá a orientação sexual em meninos e meninas. Por fim podemos afirmar que o ódio exposto pela menina em relação ao pai tem de fato a ver com sua autoridade, sua imposição de vontade e não menos importante sua própria estrutura sexual. Conflitos dessa monta exigem acompanhamento psicológico para que o processo de desenvolvimento se dê da forma mais civilizada e menos traumática possível.

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