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Colunista

Marcelo Pardo

“Eu corto meu corpo com lâminas, pois isso me alivia a tensão. As pessoas não entendem que quando me pedem para parar de me cortar, isto para mim seria o mesmo que pedisse para eu parar de respirar”

A frase do título desta coluna tem sido muito comum em inúmeros pacientes que fazem terapia. Ouvi mais recentemente de uma criança de onze anos algo que pode parecer estranho para pessoas comuns ou mesmo entre profissionais de saúde de baixa instrução, mas sim, a automutilação e a autoflagelação têm sido sintomas comuns entre jovens de nossa cultura.

Mas o que levaria uma criança de onze anos a tal prática? As respostas são variadas, pois elas têm a ver com a compreensão de si mesmo e da convivência social que aquele que se autoflagela possui.

Vivemos nos dias atuais um modelo de civilização onde as informações nos chegam em velocidade jamais vista, informações nem sempre minimamente verdadeiras, e isso não importa nessa nova dinâmica interacional, o que importa é que haja alguma forma de reconhecimento público da existência humana.

 

Sempre tivemos nossas personalidades influenciadas por outras pessoas, sejam elas familiares, amigos, conhecidos ou alguém com quem convivíamos como professores, chefes, superiores hierárquicos, líderes religiosos e, os mais instruídos, grandes pensadores da humanidade. No entanto, chamo atenção para o fato de que aquilo que Lacan denomina de O Grande Outro nunca teve tanta evidência psicossocial como em nossos dias. Quer através de videoaulas, quer através de dancinhas sensuais através da internet, milhões têm buscado a atenção de outros milhões, tem sido uma frenética e alucinada busca pelo reconhecimento público, fama, sucesso, dinheiro, luxo, tudo a serviço da mitológica ideia de felicidade plena, como se isso existisse. Tem sido a busca da pedra filosofal, do Santo Graal, do paraíso na Terra.

Mas o que isso tem a ver com a autoflagelação? Tudo a ver, em uma civilização onde há um sistemático culto hedonista, onde se imagina podermos ser felizes a partir de objetos, lugares ou pessoas, de tudo se tem feito para obtenção destas relíquias mágicas. O resultado disso é a criação de duas massas de frustrados, uma imensa massa que não consegue um milhão de likes e seguidores – a grande maioria dos usuário de conteúdo de internet -, e uma minoria não menos infeliz composta pelos que conseguem enriquecer materialmente através do que oferecem na internet: geralmente diversão para os milhares que nada conseguem, da perspectiva dos objetos que simbolizam o sucesso nas redes sociais. Eis aí a eterna fórmula do imenso buraco existencial que alimenta a mais profunda angústia humana.

 

Por mais diversões que criemos, sejam velhas fórmulas como o teatro, o humor, as artes em geral ou uma simples dancinha sensual, nós humanos continuamos tendo uma carência afetiva, uma solidão, uma inevitável tomada de consciência de nossa finitude e inexistência de propósito efetivo; exceto o imaginário, que para alguns, é necessário um contato com a dor física, a dor impingida ao próprio corpo para a tomada de consciência de que neste corpo que doí no próprio sujeito denuncia a sua existência para si mesmo.

É isso mesmo, a dor autocausada representa o anestésico mais eficaz para diminuir a dor de uma existência insuportável, de uma vida sem sentido, da total ausência de um afeto que justifique o vínculo humano, seja entre membros familiares, seja entre paixões e amores supostos. A dor do corpo possibilita que o sujeito que dela depende se sinta vivo, por mais inacreditável que isso possa parecer, a autoflagelação cumpre, enquanto sintoma, uma função, psicopatológica de construção de sentido diante do fracasso de todas as formas que a criatura que ela pratica, já tenha vivenciado.
A autoflagelação é um passo anterior ao suicídio, que pode vir a ser praticado ou não, dependendo da evolução da subjetividade humana nas pessoas com este sintoma. Não pede socorro, como muitos leigos pensam, aquele que se autoflagela apenas denuncia sua enorme anormalidade e forma psicopatológica de lidar com os desafios, dores e sofrimentos cotidianos, algo bem descrito na obra de Sigmund Freud, “O Mal Estar na Civilização”.

Evidentemente, que a presença deste sintoma demonstra necessário o tratamento psíquico com psicólogos clínicos e médicos psiquiatras.

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