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Colunista

Marcelo Pardo

A saudade entre humanos

Com cerca de seis milhões de mortes por Covid-19 em todo planeta, para muitos, a palavra saudade tem sido companheira diária em todas as partes do mundo – em alguns lugares mais, em outros menos -, mas como definir com clareza devida o que essa palavra significa?

Saudade é uma palavra da língua portuguesa que é sinônimo de falta de alguém que se foi, – se foi em vida ou se foi em morte, de algum lugar, ou período de tempo já vivido -, mas abordaremos aqui a saudade entre humanos. Essa falta do outro já demonstra claramente o tamanho da dor emocional que a saudade pode causar.

Podemos sentir saudade de amigos, que por algum motivo se distanciaram de nós, de irmãos, de namoros, de amados, de amantes, sentimos saudades de nossos pais, de nossos animais de estimação, de nossos filhos etc. Podemos sentir saudades de lugares, mas a saudade mais doída, sem dúvida, é a saudade de quem amamos e perdemos para sempre pela imposição da morte.

 

A morte é fenômeno natural, a morte chega para todos, porém a morte não é aceita com naturalidade, muito pelo contrário, em muitas culturas, a ocidental em particular, a morte é sentida com profunda dor, pelo menos em regra geral, por aqueles de maior proximidade de parentesco ou de afeto. Não estamos preparados para a morte, vivemos em uma civilização que idolatra a vida, mas não a vida de qualquer forma, a vida sobreposta de inúmeros discursos falsos sobre fantasias imaginárias que se pretendem verdades. Algumas destas fantasias são a possibilidade de uma vida sem dor, sem envelhecimento, sem fracasso, sem frustrações, sem infelicidades, sem desencontros, uma vida sem morte e, se houver a morte que ela se apresente somente quando já estivermos bem velhinhos. Tristes ilusões que só não se desfazem para mentes mais perturbadas.

Viver também dói, também envelhece, para aqueles que a morte não chegue na juventude, na infância ou mesmo na vida uterina, viver implica uma coleção de fracassos. Sim, o sucesso antes de se fazer presente em nossas vidas é sucedido por uma imensa coleção de fracassos, viver é se frustrar com pessoas, lugares e situações, grandes expectativas na maioria das vezes não são supridas. Viver infelicidades é uma constante comum na vida de todo ser humano, e mesmo quando somos questionados sobre como estamos, a resposta é meramente que está tudo bem, quando na realidade, em grande parte das vezes, não está nada bem. Viver também é colecionar desencontros quer profissionais, quer educacionais, quer fraternos, quer de grandes amores irrealizáveis, sendo este último desencontro um dos mais comuns e de profunda dor emocional, viver também é caminhar incessantemente para a morte, cada segundo, minuto, hora, dia ou ano que vivemos não são a mais, são a menos, a morte é o último dos encontros o qual ninguém deixará de realizar.

Saudade, palavra na maioria das vezes de dor, de dor profundamente doída. Muitas são as formas que podemos abordar as mortes causadas pela Covid-19, as que ocorreram e as que ainda ocorrem e ocorrerão, mas ousei aqui propor ao leitor que a morte fosse vista pela intensidade com que a saudade do morto querido de cada um dos que tiveram seus mortos, fosse percebida pelo contexto da saudade.

 

Trabalhamos muito em consultório com familiares que passaram por essa tragédia pessoal, trabalhamos seus lutos, principalmente quando estes se desdobram em melancolia, mas o que seria essa tal melancolia? De maneira simplificada, podemos afirmar que ao melancólico se estabelece uma espécie de aprisionamento na dor e no sofrimento, dos quais ele não consegue sair sozinho, precisando muitas vezes de acompanhamento profissional de um psicólogo clínico, um psicanalista e ou um médico psiquiatra. A dor e o sofrimento são profundamente intensos, podendo ser observados em sintomas muito objetivos, como perda da vontade de comer, de estudar, trabalhar, se relacionar com outras pessoas, podendo chegar ao ponto de haver forças sequer para a higiene pessoal, o sair da cama ou mesmo o falar.

A saudade contundente sede lugar à psicopatologia onde ocorre um aprisionamento tal do sujeito ao suposto objeto amado perdido se torna total aprisionamento do desejo do sujeito. Como esse padecimento psicológico poderá ser desfeito? A única maneira, obviamente, é conseguindo velar e sepultar de dentro de si essa fixação naquele ou naquela que nunca mais poderá retornar.

 

Não sabemos ao certo quando esse sentimento hoje tão comum aos humanos pode ter sido desenvolvido em nossa espécie, é possível que tenha ocorrido logo nos primórdios de nosso surgimento, tendo em vista nossa fragilidade em meio aos desafios de sobrevivência perante a natureza incontrolável e, ainda sem o acúmulo de conhecimentos que hoje possuímos ao longo de 300 mil anos de caminhada do homo sapiens sobre a face do planeta, mas já aprendido que em grupos são mais residentes e eficientes do que sozinhos.

É possível que a saudade tenha sido um importante sentimento que possibilitou a comunhão gregária em humanos em seu início de surgimento, já que quem sente saudade deseja estar perto, quem sente saudade sofre com o distanciamento, quem sente saudade sofre a dor da ausência de quem se deseja ter presente.

Hoje a saudade ocasionada pela morte de um ente querido é a saudade mais difundida em todo planeta, não por ser a única causa de morte, mas por ser a Covid-19, além de fatal, a mais propagada das formas de morte entre humanos.

Para todos que sofrem de saudades dos seus entes amados que a Covid-19 matou, meus mais profundos sentimentos.

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